Encontras-me em ti

 

Todos os escritos são da autoria de Fernanda Cruz

A escolha

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"É ao acordar, enquanto ainda estou com um pé do outro lado, que mais sinto tudo, que vejo tudo com mais clareza.

O que entendo no fim de um dia só se torna válido no dia seguinte, depois do sono. Durante um dia, são muitas as perturbações, os ruídos que nos deixam cegos, surdos e insensíveis de nós mesmos, que nos fazem usar todas as capas de proteção ao que realmente sentimos. Depois da viagem ao outro plano, vejo e sinto as confirmações das situações que por vezes questiono no momento, as que não confio na sua veracidade por serem muito diferentes do que se apresenta.

Quando a cada dia tenho a mesma sensação e esta se apresenta logo de manhã é porque, no mínimo, a possibilidade está criada, já para não dizer "vai acontecer" porque acredito no livre arbítrio e na escolha até ao último momento.

Acredito que vim cá com um propósito e que até um certo ponto teria de o conseguir sozinha e a partir dessa realização a jornada seria partilhada. Estou com uma sensação de dever cumprido, de já ter conseguido aquilo a que me propus lá do outro lado, sem aqui deste lado fazer a mais pequena ideia do que foi. Sei disso pela evolução das coisas, pelos testes que tenho passado.

Sei que nos objectivos que defini "lá em cima" está o de entender o amor como só do lado de lá, na verdadeira dimensão, seria possível. E consegui. Foram tantos os testes e quando achei que já sabia, durante o sono ainda eram limadas algumas arestas para que tivesse consciência da sua grandeza e realidade. Puxar para aqui algo que só lá existe é um desafio muito grande e muito difícil de concluir. Mais difícil é entregar uma ponta disso que puxei para cá a outra pessoa e pedir que apenas segurasse, que não deixasse fugir. Para isso é necessário ir à verdade mais profunda, mais escondida de nós próprios, se foi aí que fui buscar.

Acredito que todos trazemos em nós a essência que permite manifestar aqui essa outra dimensão, mas a educação e o meio social em que estamos envolvidos obrigam-nos, desde muito cedo, a criar armaduras de sobrevivência, principalmente emocional, que nos tiram o acesso a essa essência que trazemos connosco. Arrancar cada uma delas é um processo doloroso pois algumas já fazem parte de como somos e nunca nos conhecemos de outra forma. É um processo que cada um tem de fazer sem olhar para o lado, para o que o outro vai pensar e a linha que separa a verdade da loucura quase não existe. Atinge-se uma lucidez, vê-se tudo com uma claridade que dói e resistir de olhos abertos torna-se quase insuportável. Cá dentro entra-se num estado que faz tudo valer a pena, uma paz, um amor, uma ausência de tudo o que é mau. Mesmo o que foi vivido e experimentado em más sensações, deixa de se conseguir lembrar. É possível recordar o que nos fez sofrer mas já não se sente a dor que se sentiu. E se quisermos limpar a imagem, até isso é possível para que a paz continue lá.

Acredito que, a cada objetivo cumprido, a cada patamar, possa vir a escolha de "queres continuar ou deixas a restante aprendizagem para a próxima vida?". E é aí que escolhemos e escolhemos escolher de forma mais ou menos consciente. Se estivermos muito já em contacto com essa essência verdadeira do espírito que somos realmente, temos uma noção de que é assim que se passa, mas ainda assim somos muito protegidos para não encararmos como uma desistência, que neste mundo também nos é permitida. Então a escolha acontece porque nos desviamos do caminho para dentro de nós, pelas distrações todas que temos à volta, ou por não estarmos preparados para ir mais fundo. Podemos escolher saltar para o outro lado, olhar para este já sem essa névoa toda que nos impede de ver tudo como é e tentar perceber, com ajudas disponibilizadas lá como cá (mas que cá não entendemos como tal). Assim se dá a preparação para nova tentativa de chegar àquilo que já trazemos connosco.

O apego dificulta tudo se o espírito que somos é livre e só é compatível com um sentimento: o amor. Só no amor o espírito que somos se manifesta em verdade e quando isso acontece é tão forte que a vibração dele chega ao corpo físico com sensações que desconhecemos e não entendemos. E como não gostamos do desconhecido, abafamos, e fazemos de conta que nada se passou, ainda que seja a melhor sensação que alguma vez já experimentamos. Assim como o cérebro não consegue assimilar o que por vezes encontramos nas viagens espirituais durante o sono, também não consegue descodificar estas sensações que acabam muitas vezes por ser anuladas por quem as tem, por não se enquadrar em nada do que se sentiu até ali, por não haver um arquivo, uma gaveta no nosso cérebro onde caiba.

E se é isso que é suposto virmos cá experimentar? Se o comum a todos os propósitos em todas as vidas é chegarmos como humanos ao que somos como espírito? E se a aprendizagem e evolução forem essa? E se nas contas do deve e do haver, o saldo for em relação ao "quanto chegaste perto do espírito que és?", e repetimos este exercício a cada vida, com cenários diferentes? E se, para dificultar as coisas, esta descoberta implicar a descoberta das verdadeiras ligações do espírito que somos com os outros espíritos, que por estarem até aí inacessíveis, são muito diferentes das que estabelecemos em sociedade?

Ao chegar aqui, vem a tal escolha. Os que nos acompanham nesta vida dificilmente estão no mesmo nível de compreensão que cada um de nós está, nem no mesmo ritmo. A consciência de como tudo se passa dá-nos compreensão para isso, o que não implica conseguirmos manter o mesmo contacto e a mesma relação com eles, se as compatibilidades e afinidades espirituais conseguem ser gritantes, dependendo do nível de consciência que temos. Neste momento deixamos de sentir como verdade tudo o que até ali assim se apresentava como real, e tudo parece uma ilusão criada por nós próprios e pela forma como nos unimos aos outros. Se conseguirmos ultrapassar este choque e continuar em verdade na descoberta de nós próprios, conseguimos ver que, ao fazermos essa libertação, também estamos a ajudar esses que nos acompanharam a descobrir os seus próprios caminhos. Mas isto não deixa de ser uma crueldade para quem assiste e julga e só o é nesse caso. O julgamento é maior quanto mais afastados estivermos da essência do que somos, e o medo também. Então o medo das consequências das ações, aliado ao julgamento dos outros, faz-nos reprimir tudo isso que vem de dentro que é a manifestação do espírito, a única coisa que não pode ser manipulada. Não conseguimos impedir que, uma vez que o atingimos, ele se manifeste em nós, mas podemos optar por não nos mostrarmos como já realmente somos e aí entra-se num conflito muito grande. Dependendo do motivo pelo qual escolhemos esta última opção, pode ser permitido que não se sofram mais apertos, que não haja mais afinações, mas... (há sempre um mas) só estamos a adiar para a próxima vida aquilo que já tínhamos conseguido nesta e põe também em causa as verdadeiras ligações espirituais e como tal. Para não se estragar uma (óbvia) realidade ilusória vai-se por em causa a (embora não tão óbvia) real verdade.

Deus na sua infinita bondade permitiu-nos a existência em paralelo com os animais que nos dão tudo o que precisamos como ajudas para chegarmos a certas conclusões e os termos como exemplo. O apego é próprio do ser humano e é só olhar à volta para ver que todos os outros animais, desde cedo, forçam as suas crias a serem autónomos. Grande exemplo dá o pássaro que empurra as suas crias frágeis para a beira do ninho para que, embora na aflição, aprendam a voar. E este exemplo basta para vermos que ao protegermos os outros, evitando que caiam do ninho, estamos também a impedir que aprendam a voar e a atrofiar suas asas. Não estamos a ser nós mesmos para protegermos os outros e não permitimos também que cheguem a ser eles mesmos. Evitamos a aflição mas impedimos a maravilha que é voo para a verdade. Há um exercício que podemos fazer sempre que é por-mo-nos no lugar do outro e tirarmos daí as conclusões. Se nos fosse dada a escolha o que preferíamos: não ter a aflição mas também nunca saber voar ou voar ainda que tivesse de passar pela aflição? Para mim a escolha é óbvia se temos tantas na vida que nem são com tão elevado objectivo.

Voltando ao início, devo estar num destes patamares de escolha que me é permitida por me ter esforçado para chegar a mim, contra todos os obstáculos e agradecendo toda a ajuda e principalmente a luz para que a interpretasse como tal. Sei que ainda tenho muito para fazer aqui neste mundo mas que tal só será possível com a ajuda de outros espíritos que se permitam manifestar na essência do que já atingiram e que estes podem escolher não o fazer.

Chegar ao espírito implica ter a sensibilidade aumentada, ver as ligações por detrás das aparências, ver o outro também na sua essência, vê-lo até através das capas que ainda não tirou, sentir a intenção de cada um, o potencial do espírito que habita em cada um que pode estar ainda inacessível para o próprio. Consegue-se ver o que é verdade e o que não é, sente-se em vibrações o que vem directamente desse espírito, em rasgos momentâneos ou em entendimentos alicerçados. Agora sei porque vejo com tanta emoção o que a própria pessoa não vê em si mesma. Os espíritos que somos não estão todos à mesma proximidade de Deus, uns estão mais perto e outros mais afastados mas a cada um só é possível evoluir se conhecer quem é realmente. Há alguns muito afastados até mas, ao conseguirem numa vida chegar à sua verdade, usam todo o potencial que trazem e podem evoluir muito nessa mesma vida, dar um salto nessa evolução. Outros há que podem até estar mais próximos de Deus por todas as vivências e evoluções que tiveram, mas se não chegarem à sua verdade, podem nem ter essa noção. Depois há outros que já estão tão perto e o seu espírito é tão forte que quase não cabe dentro do corpo e vibra de tal forma que o livre arbítrio não o pode calar nem sossegar, como Jesus.

Ainda assim acredito que hajam muitos espíritos com muita energia de amor, de proximidade a Deus, que não se reconhecem assim, por não se permitirem sentir isso que vem de dentro."

 

Fernanda Cruz

 

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